Contos

Maria sonhou

Maria esteve sentada no banco da praça durante boa parte do dia, a chuva caiu, o sol voltou, a noite chegou e Maria não arredou. Bem lá no fundo de sua alma Maria sabia que a única solução era se levantar, mas não queria, não queria sair de lá. A noite tomou corpo, as luzes da praça se acenderam, Maria ensaiou um movimento, deitou-se sobre o banco, adormeceu e sonhou que tinha uma casa.


Caixinha de recordações

Ela amanheceu, triste e desesperançosa, levantou-se e decidiu olhar sua caixinha de recordações. Algumas fotos, embalagens de bombom, um broche, um par de brincos antigos, bilhetes e uma carta que desdobrou delicadamente. Seus olhos se fixaram no papel amarelado marcado pela caligrafia agressiva. Uma lágrima rolou por sua face e se fundiu no papel da antiga carta. Quem haveria escrito palavras tão intensas?


Madalena


Sozinha ela olha pela janela, se admira com as cores das casas da vizinhança, acha graça na criança que corre pelo quintal ao lado com um cachorrinho moredendo-lhe as canelas, se emociona ao ver o pássaro que pousa em um galho de uma grande arvore e se põe a gorjear, olha para tudo isso, contudo não percebe a própria vida. Entre alegrias e infortúnios constrói um viver engessado, alguns planos aparentemente imutáveis, quer escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore, objetivos sólidos que nasceram da leitura de uma revista feminina.
É fato que possui alma de artista, só não conseguiu libertá-la, é incapaz de separar as realidades, quer viver tudo num apanhado só, pensa em um poema enquanto calcula as contas do mês, o poema fica capenga e necessita fazer as contas outra vez. É uma boa pessoa, ajuda os menos favorecidos, atua na causa dos animais, só não tolera cães sarnetos e mendigos na sua porta. -Jamais!
Um dia estava sentada numa praça e chamou-lhe atenção no banco ao lado uma menina que discutia com a mãe, a menina insistia em namorar um rapaz mais velho, a mãe irredutível dizia : - Não! A menina provocava a mãe que já estava prestes a perder a cabeça. Ela invejava a menina, nunca teve ninguém que se importasse dessa maneira com sua vida, e nesse momento por mais que seus instintos fuxiqueiros indicassem que deveria ficar ali e ouvir a conversa, foi tomada de uma imensa tristeza, levantou-se do banco e seguiu rumo a sua solidão.


Helena


Helena não conhecia outra maneira de viver, seguia sua passagem pelas vias do arrepender. Um dia sorriu para um bonito rapaz numa tarde ensolarada, condenou a própria ação, voltou para casa desconsolada. Numa manhã de domingo foi a igreja, assistiu a missa, tomou a comunhão, ao sair, arrependeu-se de ter fé. Num outro dia retornava do trabalho cansada e no ônibus cedeu o lugar para uma velhinha, arrependeu-se da ação e começou a chorar, a velhinha compadecida ofereceu-lhe um lenço mas não estava em sua natureza aceitar. Pobre Helena, em sua essência parecia ser nula a liberdade do prazer, era daquelas cuja missão no mundo consiste em cultivar o próprio sofrer.
Mas nem tudo na natureza de Helena é tão sombrio, certa vez, e não há muito tempo, conheceu um homem interessante, tardes no parque, noites regadas a boa música e muito vinho, não demorou muito seus corpos simultaneamente sentiram o desejo de se encontrar. Havia duas semanas que Helena não se arrependia, veja querido leitor, tive até esperanças de que minha heroína poderia viver feliz e naturalmente, mas a felicidade é como o éter, evapora num piscar, o homem era casado. Agora Helena chora e ao mesmo tempo se arrepende de chorar.


Passagem


Era manhã de sol, ou não era? Sei não! Acho que naquela manhã ele tomou o ônibus como de costume, sentou-se no banco em frente ao cobrador, abriu o jornal e começou a ler, também não me lembro das notícias do dia. Lembro-me agora que o dia estava chuvoso, que o ônibus lotava a cada parada, que uma senhora com uma sacola parou ao lado dele e que ele gentilmente se ofereceu para segurá-la. Também me lembro que olhou para a moça que todos os dias toma o ônibus na parada do posto de gasolina. Lembro-me que ela disse. Olá! E que ele acenou com a cabeça e ensaiou um sorriso sem mostrar os dentes, sei também que naquele dia ele sentiu esperanças quando a senhora com a sacola se foi e quando o passageiro da janela levantou-se cedendo lugar à moça. Agora me lembro tão bem que posso vê-lo girando o corpo na direção do corredor para que ela pudesse se sentar, e então lado a lado eles se entreolharam, ela sorriu, tinha dentes bonitos dignos de uma equina de fino trato, já ele, carregava na boca o retrato dos muitos anos de exploração de seu trabalho. Quando ele sorriu ela bocejou, encostou a cabeça no vidro e dormiu.