quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Rebelião - exercício ficcional com material real

O garoto estava trancafiado havia cerca de um ano. Naquele dia já tinha sido orientado sobre o que fazer, como agir, a quem deter, ele e os outros garotos iriam render o agente na hora do café, assim, de assalto, sem dó, com fé, até porque, por incrível que pareça, Deus também estava lá. Enquanto ele encostava a faca enferrujada no pescoço do funcionário, os outros correram para fazer novos reféns.
Pensava:
...Funça filho duma puta, não arranco seu pote agora porque não é a minha, mas você bem que merece, ah, merece, passa por mim e me xinga de donzela, vamos ver quem é a donzela agora? A cadela da sua mãe é que não é, né?...
Nada dizia, só segurava a faca colada ao pescoço do Rodrigo Negão, que também em silêncio, com os olhos arregalados, pensava:
...Agora fodeu, fodeu, fodeu, esse moleque vai cobrar a bronca de toda a zoação. Ah! Dane-se, que se dane...

O CHEIRO DE FUMAÇA EMPESTAVA O AR

Uma voz ecoou:
- Olha aí! bando de paga pau, avisa lá praquele que passa gel nos três fios da careca, que ele vai ter que enfiar a mão no NOSSO e no VOSSO  bolso pra comprar mais colchão!

HELICÓPTEROS SOBREVOAVAM O PRÉDIO - A TEVÊ COM A NOTÍCIA PRONTA - MARCELO REZENDE DAVA PULOS DE ALEGRIA E PREPARAVA A PAUTA PARA O FIM DA TARDE - NO FACE A OPINIÃO JÁ ESTAVA FORMADA.

Enquanto a maioria dos garotos seguia para o pátio, aquele que estava com Rodrigo Negão permaneceu no refeitório com a faca, obviamente, ainda no pescoço do rapaz (Rodrigo), pensamento confuso, a tensão do momento, as memórias...Tinha uns cinco anos, o pai deu a última surra na mãe e foi para o bar, ele atrás, descalço, enfiou o pé na valeta e ganhou de brinde uma casca de cebola, uma das poucas coisas que calçou naquela época, no bar, o pai bebia e falava alto, provocava o Zito, dono do boteco, que já cansado de pendurar as doses de cachaça e de ouvir nhem nhem nhem, pegou um pedaço de caibro e desceu na cabeça do bebum, que caiu, nem teve essa de último suspiro...
Cabeça confusa, mãos firmes, os suores do algoz e da vítima, da vítima e do algoz (nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto?) se misturavam. O pau cantava do lado de fora, o choque pronto para entrar,  a molecada eufórica e envenenada tocava fogo no caixote. Rodrigo não se mexia, pediu calma ao garoto uma, duas,  três vezes, não obteve resposta. Queria ser policial, cresceu na favela, a mãe lavava roupa em casa de grã-fino, o pai era vigia em um condomínio, na escola não era um dos melhores, mas a escola também não era, então estava tudo certo, o sonho de ser policial foi adormecendo quando a namorada de dezesseis anos engravidou. Mas Deus existe, não é mesmo? Prestou um concurso e lá estava, pronto para estabelecer a ordem e arriscar o pescoço.

Outra voz ecoou:

- Ô! Você aí com funça, traz esse jegue aqui para fora!

Os dois seguiram para o pátio com seus suores e suas memórias, o sol impiedoso os cegou momentaneamente, sentiram o peito arder, uma bala certeira, vinda sabe-se lá de onde os atravessou, caíram, o garoto sobre Rodrigo. O+ e A- desafiando as leis da incompatibilidade em uma larga poça no chão.

LÁ DO ALTO A CÂMERA FLAGROU TUDO




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